Educação é uma arma na luta contra o abuso sexual infantil
23/05/12 | 06:00 - SUL 21
Rachel Duarte
O símbolo da ‘rainha dos baixinhos’ surtiu efeito maior do que
qualquer campanha de divulgação relacionada aos serviços de proteção às
vítimas de abuso sexual infantil.
As denúncias de violência sexual
dobraram depois da declaração da apresentadora Xuxa Meneghel, em rede
nacional de televisão no último domingo (20), admitindo ter sofrido
abuso mais de uma vez na adolescência. Na segunda-feira (21), o
Disque-Denúncia Nacional (Disque 100) teve as linhas congestionadas de
pessoas revelando casos recentes e outros guardados por anos na memória
das vítimas.
Casos de abusos sexuais contra crianças e adolescentes, como os
sofridos pela apresentadora Xuxa Meneghel, são comuns, e as denúncias
aumentam a cada ano. Nos quatro primeiros meses de 2012 o aumento foi de
30 mil ligações, sendo 11% sobre violência sexual contra crianças
dentro do lar. O que significa um aumento de 71% em relação ao mesmo
período do ano passado.
O abuso sexual afeta 15% dos 65 milhões de menores de 18 anos no
Brasil, sendo que 6,5 milhões destas agressões são contra meninas.
Porém, um estudo financiado pela Organização Panamericana da Saúde
(1994), mostra que somente 2% dos casos de abuso sexual contra crianças e
adolescentes dentro da família são denunciados à polícia.
“Não é um levantamento recente. O que acontece é que os casos
passaram a ser comunicados de forma mais consistente e isto dá impressão
de que houve aumento. Não me parece ser verdadeiro este aumento”,
acredita a promotora da Infância e Juventude do Rio Grande do Sul,
Denise Vilela. Segundo ela, com o aumento de campanhas de incentivo à
denúncia, há um ambiente favorável a que se fale sobre os abusos.
“Antigamente tinham famílias que conviviam com a prática incestuosa como
se fosse normal e tudo ficava no ambiente do silêncio. Hoje, de tanto
que debatemos e promovemos o tema, ele se tornou mais presente na vida
das pessoas”, explica.
A violação silenciosa
Infelizmente, a prática de abuso sexual infantil é comum e
silenciosa. Na maioria das vezes, o abuso ocorre no contexto de uma
relação afetiva entre o autor (geralmente o pai) e sua vítima
(geralmente a filha). Ainda que os pais eduquem seus filhos
orientando-os a desconfiar de estranhos, a prática do abuso é certamente
realizada por alguém que a criança conhece, confia e ama e essa
relação, cercada de segredos, facilita o domínio perverso sobre a
criança.
O abuso sexual normalmente não deixa marcas físicas, já que o
abusador age sem violência, usando de sedução e ameaça, o que faz com
que a vítima tenha medo da revelação e suporte a violência.
“O abusador sempre age na base do segredo e na combinação do silêncio
com a vítima. A maioria dos casos não acontece de forma extremamente
violenta como se fosse um estupro. É um abuso de forma libidinosa, com
sedução. A vítima se sente escolhida por aquele sujeito”, explica a
professora do curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), Jane Felipe de Souza. O que não significa
que a vítima tem culpa por “permitir” o abuso, complementa. “A relação
entre adultos e crianças sempre é de poder. O adulto é que detém o
conhecimento e adota estratégias para conseguir o que quer das
crianças”, ressalta.
Na avaliação de Jane de Souza, que atua nos grupos de estudos de
Educação Infantil e Relações de Gênero da Ufrgs, o abuso sexual infantil
não é necessariamente uma questão de pessoas vitimadas ou doentes. “É
comportamental. Está relacionado à educação dos homens. Dos homens,
porque a maioria dos casos o homem é o agressor.Temos uma educação muito
machista onde a eles é permitido fazer tudo, inclusive na prática
sexual. Se criam meninos sem limites e
homens também. Dentro da lógica de que a experimentação sexual é vasta e
permite explorar os corpos, sejam eles quais forem, para sua prática”,
defende. E faz uma distinção: “Tem que se ressaltar que é uma
prática de heterossexuais porque há um preconceito absurdo de que
somente homossexuais seriam abusadores e é um equivoco grande”.
A professora observa também um segundo aspecto necessário para
compreender sobre o tema da violência sexual infantil: a falta de
proteção das famílias às crianças. “Os pais conseguem instruir para
situações perigosas como brincar com fogo, não falar com estranhos e não
atravessar a rua correndo. Mas não conseguem explicar de forma
tranquila e clara para as crianças que existem comportamentos de adultos
que não podem ser praticados com elas”, compara.
“O abuso sexual de crianças é um fenômeno de gênero”, diz secretária
A conivência das mulheres no contexto familiar em que acontece abuso
infantil também encontra sentido na educação machista. De acordo com a
secretária de Políticas para Mulheres do Rio Grande do Sul, Márcia
Santana, alguns casos chegam ao conhecimento do estado por meio do
serviço Escuta Lilás, disque-denúncia de violência contra mulheres.
”Muitas relatam abuso a si e também a prática estendida às filhas.
Fazemos o atendimento da mulher e da criança”, explica.
Frente ao dado de que 90% dos casos de abuso sexual infantil
registrados no RS são de meninas, Márcia ressalta que “todos os serviços
e ações da Secretaria sempre consideram o atendimento de acordo com a
questão geracional da mulher. Em todas as nossas pautas, principalmente
nas ações de enfrentamento da violência, está incluído o atendimento de
meninas”. E lamenta mais um reflexo do machismo na sociedade. “Temos que
incentivar a denúncia e dar visibilidade no enfrentamento da questão. É
um fenômeno de gênero, da cultura machista que atinge até a infância”,
argumenta.
“Não basta punir os agressores, tem que recuperá-los para evitar reincidência”, alerta promotora.
De acordo com dados do Ministério Público do Rio Grande do Sul, os
casos levam de um a nove anos até serem denunciados. Mesmo com a
garantia de um futuro processo judicial, a resolução dos casos exige uma
força multidisciplinar.
“É uma investigação complexa. Temos que eliminar todas as hipóteses
de que as evidências das crianças não tenham relação com outras causas
para então apontar o abuso sexual. E, como não há provas e é raro haver
testemunhas, temos que adotar provas técnicas. Fazer perícias físicas e
psicológicas para abrir os processos”, conta a promotora gaúcha Denise
Vilella.
Segundo ela, o trabalho envolve agentes de Saúde, delegados de
Polícia, juízes e promotores. “Mas não acaba no atendimento a vítima e
nem vamos acabar com os casos. O que fazemos é trabalhar para diminuir a
incidência”, fala.
Para se ter uma ideia, antes de 2010, apenas 8% dos suspeitos de
abuso eram responsabilizados na Justiça Regional da Infância e da
Juventude no RS. Após a criação do Centro de Referência de Atendimento
Infantil (CRAI) e da capacitação dos conselhos tutelares, o número
passou para 62%. Mas, a promotora Denise Vilela alerta que não baste
punir os agressores. “Uma situação é o atendimento à vítima. A outra, é a
eventual punição do agressor. Eventual porque não basta ele ficar
privado de liberdade por anos e ao sair, voltar a praticar a mesma
conduta e cometer novos crimes”, fala.
Na avaliação da professora Jane de Souza, “a sociedade
brasileira ainda é hipócrita e preconceituosa” e resiste à ideia da
escola poder trabalhar a sexualidade e orientar quanto à práticas
abusivas. “Isto é absurdo. Como se as crianças não vivessem em meio a
diversos canais de estímulo à erotização e à espetacularização da
sexualidade. A escola pode ser uma grande parceira das famílias para
educação, esclarecendo estas questões”, alerta.
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