ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
Um crime perfeito
Por Ligia Martins de Almeida em 05/06/2012 na edição 697.
Em matéria de crimes perfeitos, o abuso sexual de crianças e
adolescentes pode, tranquilamente, ser colocado em primeiro lugar: a
vítima, intimidada e sem saber o que está acontecendo, prefere se calar e
obedecer ao agressor. Quando fala, corre o risco de ser acusada de
mentirosa. E o crime pode se repetir até a vítima deixar de ter
interesse para seu agressor. O dia em que as ex-crianças abusadas
resolvem falar, então é tarde demais. O agressor não pode mais ser
punido, pois, segundo a lei atual, o crime prescreve em 16 anos.
O que fazer para mudar essa situação? O que a mídia pode fazer para
ajudar? Falar do assunto publicamente – especialmente se a vítima é uma
pessoa famosa – pode contribuir. E nisso a imprensa tem um papel
fundamental. Depois do depoimento de Xuxa ao Fantástico
(domingo, 20/5), “aumentou em 30% o número de denúncias sobre abuso
sexual infantil no serviço de denúncias por telefone apenas nos dois
primeiros dias”, segundo apurou a revista Veja (edição nº 2271, de 30/5/2012), que dedicou oito páginas ao assunto. Foram 285 mil chamadas.
Na reportagem, Veja fala de famosos e anônimos que foram
vítimas na infância. Entre eles a apresentadora de TV norte-americana
Oprah Winfrey, que, ao contrário de Xuxa, nunca teve suas declarações
contestadas. Nunca ninguém disse que Oprah estava querendo melhorar o
ibope ao fazer programas inteiros discutindo o assunto.
O mito das famílias pobres
O tema, aliás, é quase recorrente nas séries policiais como Lei e Ordem SVU, Criminal Minds
e outras veiculadas nos canais por assinatura. E a gente fica se
perguntando se os americanos são mais doentes do que nós ou se os
roteiristas das séries descobriram o quanto o crime contra crianças
comove os espectadores.
Veja faz outra revelação importante: a de que crimes sexuais
contra crianças ocorrem em todo tipo de família: pobres, ricos, educados
e sem cultura alguma. Diz Rosana Morgado, professora da Escola de
Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro: “Dissociar o
fenômeno da pobreza é fundamental para descontruir o mito de que ele não
ocorre nos lares mais abastados”.
Um engano denunciado também na cartilha do Ministério da Justiça que
faz parte da Campanha de Prevenção à Violência Sexual contra Crianças e
Adolescentes. O mito, segundo a cartilha, é que esse tipo de crime
acontece com mais frequência em famílias pobres. A verdade:
“Embora os indicadores apontem isso, é mais comum que as famílias de
baixa renda procurem os serviços de proteção a crianças e adolescentes
do que as famílias de renda mais elevada. Por essa razão, os casos
registrados em famílias de baixa renda aparentam ser mais numerosos.”
Em meio a depoimentos comoventes e até chocantes, Veja faz o que poderia ser até um mea-culpa da imprensa ao dizer que...
“A multiplicação das denúncias é um fenômeno que se repete sempre que
alguma rachadura joga luz sobre o mundo escuro, sórdido e solitário dos
abusos sexuais de adultos contra crianças, um universo cujas verdadeiras
estatísticas ficam escamoteadas sob o manto do silêncio e do medo.
Quantificar um crime sobre o qual paira o segredo é tarefa dificílima.
As estatísticas são sempre menores que a realidade.”
Talvez o melhor serviço que a imprensa possa prestar seja orientar
adultos sobre a melhor forma de prevenir esse tipo de crime. Esperar que
outra celebridade tenha coragem de falar do assunto é muito pouco.
Falar e deixar o assunto morrer é uma omissão grave. Serve apenas para
aumentar o ibope de programas de tv e vender alguns exemplares a mais de
jornais e revistas. É parte do interesse da imprensa enquanto negócio,
mas fica bem longe da sua verdadeira missão: formar e informar.
Ligia Martins de Almeida é jornalista.
Acesso em: http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed697_um_crime_perfeito
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